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quarta-feira, 30 de junho de 2021

A segregação no espaço concreto e virtual determinada pelo mundo pós-moderno: Fortificações concretas e digitais



disponível em : https://www.revistaponte.org/post/pos-modernidade-segrega%C3%A7%C3%A3o-espa%C3%A7o-concreto-virtual

As representações sociais se constituem através das interações em sociedade, uma vez que  grupos humanos compartilham o  espaço e consequentemente, o modo de vida. Sendo assim, essas interações estão em constante movimento e podem modificar-se ou serem enriquecidas, contribuindo para que não se tornem hegemônicas, o que ocorre quando ao contrário, estão apoiadas em estereótipos cristalizados originados de leituras equivocadas ou ainda, como reflexos das transformações da modernidade.

            Considerando esta perspectiva, constata-se que a modernidade nos contemplou com o aprofundamento da luta de classes, quando se refere à dinâmica do sistema produtivo. Por outro lado, a pós-modernidade aprofundou a segregação social dos espaços (concreto e virtual) ao passo em que fortaleceu a individualização do  sujeito,  não no sentido de indivisível, mas no sentido da indiferença entre eles,  principalmente em relação aqueles que sobrevivem nos centros metropolitanos, onde a face do sistema capitalista se mostra muito mais claramente que em regiões interioranas.  Ou seja, as novas visões de mundo e representações sociais impostas pelo contexto pós-moderno, refletiu de forma contundente no processo das interações sociais dos grupos mais afetados pelas grandes transformações dos séculos XIX e XX.

Até mesmo os espaços públicos foram dando lugar a espaços segregados de maneira a promover o isolamento dos sujeitos, em todos os aspectos da dinâmica da vida em sociedade e as interações que se estabelecem a partir dela.  Lazer, trabalho, escola, enfim, a maioria das estruturas que promovem as interações sociais foi se diferenciando e se separando de acordo com as visões de mundo e representações sociais dos grupos que compõem a sociedade heterogênea do século XXI.

O capital ou o dinheiro, em nome da liberdade e individualidade, limitou as relações sociais e as conduziu através de valores que determinam o valor humano. A disputa por status está presente no estilo de vida pós-moderno e de forma mais intensa, nas grandes metrópoles.  O consumo de bens e a posição que estes ocupam no ranking da modernidade, é o fator de diferenciação em relação àqueles que são definidos por “bem comum, ultrapassado ou obsoleto”, sendo que na escala hierárquica, quanto mais modernos e atualizados estarão sempre uma posição acima dos outros.

De forma imperativa, a pós-modernidade se apresenta através da razão, em detrimento à emoção. Quanto mais lógico, pragmático, ordenado, sistemático, mais moderno e superior. As sensibilidades neste contexto tornaram-se improdutivas e desnecessárias, uma vez que limitam as dimensões e atrasa o progresso, uma das palavras-chaves do mundo moderno.

A globalização, uma das consequências do advento da internet, ocupou espaço nas transações comerciais de grandes mercados (os chamados mercados digitais) e sutilmente, passou também a ocupar  espaço nas  interações sociais a longa distância, através das chamadas “redes sociais”.  Atualmente, o mundo virtual paralelo ao mundo concreto, tomou dimensões ilimitadas no que se refere à comunicação em massa, alcançando milhares de pessoas em tempo real e determinando o tom do diálogo na política, na religião, na cultura, economia.

Ratificando ainda mais as tendências pós-modernas, a pandemia do século XXI acabou por oportunizar ao sistema a possibilidade de automatizar ainda mais as relações e os vínculos entre trabalhadores, familiares e amigos de modo a conduzir as interações através do uso das redes sociais e das tecnologias em prol do isolamento social. E neste recurso, apesar de ser globalizado e considerado democrático, existe a formação dos grupos e a polarização de ideias que se dão de maneira mais clara, sem que impedimentos morais limitem visões de mundo, suplantando  até mesmo o que é considerado como consenso universal em direitos humanos, no mundo civilizado.

Formam-se comunidades e grupos que se identificam em algum aspecto ao passo que excluem aqueles que não se enquadram no perfil desejado.  Neste mundo virtual, é possível existir ataques e defesas, desmoralização e enaltecimento de figuras emblemáticas, divulgação de fatos verídicos e por outro lado, mentiras deflagradas com o propósito de confundir pessoas menos esclarecidas. Enfim, é como um mundo paralelo ao mundo concreto, polarizado, segregado, fragmentado, sob a alcunha da globalização, ou universalização da comunicação.

Há ainda a sensação de segurança, pois apesar da interação ocorrer, por ser em espaço virtual, o usuário acredita se resguardar da realidade pungente que no mundo real, concreto, não há como escapar com um bloqueio ou exclusão. Enfim, o mundo virtual pode ser comparado a uma espécie de “solidão acompanhada”, uma vez que apesar das interações sociais ocorrerem, existe a linha tênue entre os usuários, que é o aparelho, uma espécie de fortificação digital, como um muro de proteção entre a realidade concreta e o mundo virtual.

No entanto, quando se fala em segregação de espaço, fato é que muito antes das redes sociais se popularizarem e da pandemia acontecer, o sujeito pós-moderno já se encontrava solitário em meio a uma multidão de semelhantes. Na atualidade, toda a cadeia que lhe confere o status de ser social, contribui para este isolamento. Até mesmo o próprio planejamento urbanístico das grandes metrópoles reforça o fenômeno isolacionista.

A capital mineira, por exemplo, é o resultado de um projeto moderno onde a estrutura viária foi projetada como “veias e artérias” CALDEIRA (1997), otimizando o fluxo e centralizando os serviços na região central. Pela proposta, percebe-se que a cidade foi projetada para os funcionários públicos do Estado, pois a maioria dos espaços de lazer e trabalho possui ligação com as áreas reservadas a esta classe de pessoas. Porém, com o passar dos anos e sem uma política de acolhimento das famílias de baixa renda que trabalhavam na cidade e usavam todos os serviços públicos ali concentrados, passaram a estabelecer em seu entorno, inúmeras moradias de forma irregular. Foi então que a partir da década de 1970, com a expansão do espaço periférico em consequência da iniciativa de reformulação da capital belorizontina, tais famílias foram sumariamente “empurradas” para a região metropolitana, nas cidades vizinhas, inclusive históricas. Foram construídos para tanto, conjuntos habitacionais e loteamento de grandes áreas em acordo com as prefeituras daquelas cidades. Ou seja, o espaço urbano das grandes metrópoles, não foi projetado para as grandes aglomerações, para o intenso fluxo de trabalhadores assalariados, tão pouco para a interação social entre os variados grupos. A despeito disto, o aumento populacional e a falta de políticas de regulamentação e distribuição do espaço, na maioria das vezes submissa à especulação imobiliária, gerou o que CALDEIRA (1997) define como “segregação urbana”, consequência da criação de “enclaves fortificados”.

Estes enclaves, de acordo com a autora, são fenômenos que ocorreram em grandes cidades como São Paulo, por exemplo, que em virtude do processo de globalização, centralizaram na cidade os polos de transações comerciais e financeiras, em detrimento às regiões fabris que se destacavam até a década de 1980. O resultado foi a transformação urbanística que levou ao surgimento de cortiços e favelas, estabelecidos em fábricas e casas abandonadas e que segundo a autora, é uma das  causas da segregação do espaço urbano. Segregação que se consolida através do surgimento de condomínios como alternativa para separação das classes, os quais se estabelecem em áreas estratégicas, mas de maneira isolada, pois dentro deles encontram-se grande parte da rede de suprimentos para atendimento da demanda dos seus moradores. Demandas estas, relacionadas à suas próprias expectativas culturais, familiares, profissionais e a todos os outros aspectos que determinam seu posicionamento como ser social, como afirma SIMMEL (1973, p.13) ao se referir às mentalidades que se manifestam no estilo de vida pós-moderno, metropolitano:

“- pode-se deixar cair um fio de prumo para o interior das profundezas do psiquismo de tal modo que as exterioridades mais banais da vida estão em ultima análise, ligadas às decisões concernentes ao significado e estilo de vida”.

Portanto, a segregação do espaço, seja no mundo virtual, seja no mundo concreto, é a realidade do mundo pós-moderno. Em consequência, o ser social transformou-se em um ser solitário, que interage de forma autômata com seus grupos, obedecendo à lógica do sistema que determina seu estilo de vida de forma que este se sinta parte da sociedade. O sujeito está só, rodeado de uma multidão que ironicamente, também está. 

O mundo pós-moderno é um mundo de separações. Os sujeitos se identificam por seu modo de vida e ali estabelecem uma espécie de comunidade que coexiste com outras comunidades dentro de uma sociedade. Existem as comunidades dos trabalhadores os quais buscam sobreviver com o mínimo de dignidade, transitando entre os espaços públicos buscando apropriar-se deles, mas na maioria das vezes, sem sucesso. Existem as comunidades daqueles com maior poder aquisitivo, os quais criam seus próprios espaços, dentro do espaço público de modo a proteger-se daqueles que não se identificam com seu modo de vida e, portanto, não podem transitar em seus “territórios”, o que é garantido com segurança própria e apoio da segurança pública, em nome da lei e da ordem.

Existem também aquelas comunidades alternativas invisíveis para o Estado e para as comunidades abastadas, mas sempre presente como mão-de-obra a ser explorada. São as favelas, os cortiços, os sem teto.

Por fim, as cidades e as redes trazem consigo uma espécie de mosaico de povos, os quais buscam sobreviver em meio à dinâmica do sistema e as transformações constantes e que se impõe sobre o modo de vida da sociedade. E este modo de vida, tanto no mundo virtual quanto concreto, apropria-se da alteridade para a segregação, para o isolamento e exclusão do que é diferente, transformando sociedades em um conjunto de comunidades ou grupos rivais, polarizados e indiferentes àquilo que os torna semelhantes: a própria humanidade.

 

Autora: Marcia Fernandes da Cunha

Graduada em História e Mestranda em Educação e Docência pela FAE/UFMG

Artigo disponível em: https://www.revistaponte.org/post/pos-modernidade-segrega%C3%A7%C3%A3o-espa%C3%A7o-concreto-virtual

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 


AUGÉ, Marc. Não-Lugares: uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1996.

CALDEIRA; Teresa; Enclaves Fortificados: a nova segregação urbana; Março; 1997

LEFEVBRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2006.

MARICATO, Erminia; Para entender a Crise Urbana; 1º ed., Ed. Expressão Popular; São Paulo; 2015

OLIVEIRA; Claudio Márcio; Deslocamento de trabalhadores em Belo Horizonte; elementos para pensar a educação na forma de acesso à cidade;2011.

SILVA, T. T. . Identidade e diferença: impertinências. Educação e Sociedade, São Paulo (SP), n.79, cap.2, 2002.

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