Um suposto texto do Padre
Fábio de Melo, conhecido por ser padre e artista, formado em
teologia e filosofia, está circulando nas redes sociais, no qual ele teria apresentado possíveis motivações para o
massacre ocorrido em Suzano. No texto, o autor procura eximir de
responsabilidades o governo mesmo diante do fato de que este, desde
sempre, cultua o uso de armas e a violência como meio de solucionar
conflitos, além da estratégia de eliminar “inimigos” através
da morte; cita em sequência, também excluindo das possíveis
causas de tamanha tragédia, jogos violentos, o bullyng e a omissão
das escolas (não especificou em que sentido). Em seguida, nomeia
como causa a desestruturação das famílias, a falta de diálogo,
este substituído por redes sociais e ainda, os “presentes”
como moeda de troca para se cumprir direitos e deveres e por último,
o que ele chamou de “desconhecimento de deus”.
Abaixo,
uma análise a respeito do discurso atribuído ao padre, o qual levarei em
consideração como fundamento de sua análise, a formação
religiosa e moral familiar deste, e que representa bem grande parte da ala conservadora de nossa sociedade. Isto, porque a "moral e bons costumes" ditados pela formação religiosa, influencia
na compreensão de conceitos como família, estruturas sociais,
deus, deveres e direitos, escola e sobretudo, governo como Estado –
instituição político-administrativa responsável pela manutenção
da lei, ordem, dignidade e sustento de toda a sociedade nas áreas da
educação, saúde e segurança.
Relembrando
crimes cometidos contra estudantes no Brasil, estes tiveram início
em 2011, em uma escola situada no Rio de Janeiro, Realengo, com saldo
de 22 feridos e 13 mortes (incluindo o assassino). Em 2017, no Estado
de Goiás, além de 2 óbitos, uma aluna ficou paraplégica e três
gravemente feridos. Em Janaúba, MG, no mesmo ano, uma creche foi
incendiada por um segurança, deixando um saldo de 14 mortes e 37
feridos com queimaduras severas.
Analisando
os casos, o que há em comum entre os crimes é a expressão e
manifestação do ódio, da vingança e da determinação de
pessoas que aparentemente, possuíam como motivação, no caso dos
dois primeiros, a prática do bullyng e no último, indícios de
doença mental, a esquizofrenia. Em todos os crimes, a incapacidade
do indivíduo em lidar com as dores pessoais, provocadas por
negativas ou críticas destrutivas por parte do outro, é latente.
Mas
o que de fato chama atenção para tais práticas, é a reação da
sociedade e dos governos diante dos massacres. Contextos que devem
ser considerados estão sendo esquecidos propositalmente por alguns
ou por puro desconhecimento ou ausência de uma reflexão mais
profunda, por outros . Se analisarmos os países em que há maior
incidência deste tipo de crime, entenderemos que o fator
socioeconômico, é irrelevante para determinar ou ao menos se
relacionar às causas. Alemanha, Canadá, Estados Unidos, são
campeões em matéria de massacre de estudantes, países em que o
desenvolvimento econômico é historicamente superior ao do Brasil.
Porém,
o contexto sociocultural, e no caso do Brasil especificamente, somado
ao contexto sociopolítico , são determinantes para se compreender
não a motivação em si (uma vez que é individual e somente quem
praticou o ato é que será ou seria capaz de explicar de forma
contundente), mas o conjunto de fatos que influenciam, facilitam e
ainda, por negligência, permitem que tais massacres aconteçam.
O
padre Fábio, não compreende tais contextos, ou não os identifica
como facilitadores ou influenciadores, já que para ele, a
desestrutura familiar não se relaciona com a cultura dominante ou
com o Estado e as negligências na execução de suas prerrogativas
como poder público e administrador da sociedade. O Padre precisa
compreender que existem inúmeros fatores que causam desestruturas em
famílias, além da falta de uma religião. A própria educação
moral da sociedade brasileira é violenta, machista, misógina,
homofóbica, racista. Sendo o país um dos maiores redutos da fé
cristã, crescemos sob a dominação da moral punitiva, excludente,
severa. Logo, em famílias “estruturadas” sob esta moral,
principalmente as famílias tradicionais e consideradas de “bem”,
onde o modelo familiar é o da união hétero-cristã, a violência
e o massacre são particulares, não publicizados ou não executados
em forma de crime em massa. Sob este aspecto e considerando todos os
estereótipos criados pela moral familiar hétero-cristã patriarcal
da sociedade brasileira, o fator “educação familiar” como
fundamento para a formação do caráter de um jovem, talvez se
constitua o fator mais relevante como contribuição para a eclosão
do ódio e matança.
Famílias
que se negam a progredir em relação aos direitos coletivos,
cultuadores de uma moral que segrega e ridiculariza pessoas
diferentes, amantes do caráter violento que prega o culto às armas
e usa a violência como resolução de conflitos, homens que
submetem mulheres a agressão doméstica por crer em sua
“inferioridade” de gênero, radicais religiosos que enxergam a
homossexualidade como crime contra a natureza humana e uma lista
infinita de posturas radicais, conservadoras e carregadas de
discursos de ódio, são um celeiro para a projeção de inimigos
imaginários, contra os quais, jovens incapazes de lidar com a
própria dor , se constituem por assassinos impiedosos, com armas de
fogo, machadinhas e bestas, como aqueles heróis dos jogos em que, se
perderem, podem começar a jogar novamente, contrário do ceio
familiar em que, negligenciados pela própria moral, a morte lhes cai
bem.
Entra em cena então, o contexto sociopolítico. Sabemos que desde a
queda da ditadura, é a primeira vez que a relação entre a
população e o Estado tem experimentado (de uma perspectiva
otimista), certa liberdade de expressão facilitada principalmente
pelo uso massivo das redes sociais. Atualmente, é possível
debater assuntos polêmicos e manifestar opiniões, independente se
estas são consideradas politicamente corretas ou não e com a
liberdade que provavelmente, nem em casa diante da família, é
possível. Nas redes sociais e aí, concordo com o padre quanto a
falta de diálogo familiar, substituído por tecnologia, podemos
interagir em tempo real com pessoas de várias partes do Brasil e do
mundo e falarmos de absolutamente tudo, inclusive em grupos fechados
que atraem pessoas com a mesma ideologia ou filosofia de vida. E é
neste momento que entra a responsabilidade do Estado, como
administrador da sociedade constituída por forma e sistema de
governo, leis e regras de conduta: O Estado tem cumprido suas
prerrogativas a ponto de se não evitar, ao menos identificar
possíveis condutas de risco dentro das escolas, nos bairros, nas
cidades?
Quando
cito o “Estado”, incluo todas as estruturas possíveis, que se
submetam a sua gestão sob a propositiva de um Estado-nação.
Inclusive a estrutura familiar. É dever do Estado combater todo o
tipo de discriminação, preconceito, prática da violência. É
dever do Estado aparelhar as escolas, os hospitais, as praças, as
instituições de segurança pública, contra crimes de quaisquer
naturezas, inclusive o crime contra a natureza. É dever do Estado,
através das escolas, dos conselhos tutelares, e de diversas outras
instituições que atuem diretamente como interventoras no processo
de construção social, usar de todos os meios possíveis para se
promover a conscientização sobre igualdade de direitos, direito à
diferenças, a liberdade de escolha, para que assim promova harmonia
e a segurança de todos.
Logo,
o padre Fábio falou a partir de seu quintal, de sua criação, de
sua moral religiosa. A igreja tem criado e fomentado um deus
vingativo, é só ler as cartas deixadas pelo aluno em realengo. O
Estado tem incitado à violência, tem cultuado as armas e tem
pregado a morte de inimigos. Tem sido historicamente omisso no que se
refere as estruturas das instituições públicas imprescindíveis
para a atuação em casos de desestrutura familiar.
O
padre Fábio, criou uma falácia.
Não
repitam.
Marcia.
Professora de História
Mestranda
em Educação e Docência.
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